A recuperação de crédito é uma atividade fundamental para a manutenção da saúde e o cumprimento de obrigações financeiras das empresas. A falta de pagamento de uma dívida, por exemplo, pode levar à inadimplência e, consequentemente, a dificuldades no adimplemento de obrigações, o que pode prejudicar o seu funcionamento.
Nesse sentido, a atuação do setor de recuperação de crédito nos escritórios de advocacia é imprescindível para auxiliar a recuperação desses valores e/ou o adimplemento de determinada obrigação. Ademais, é estruturado para atuar em diversas frentes, como a negociação de dívidas, a realização de cobranças extrajudiciais e, se necessário, o ingresso com ação judicial para garantir o recebimento dos valores devidos.
O enfoque do presente artigo é justamente a atuação no âmbito judicial, e os percalços que o operador do Direito se depara ao atuar nessa seara, principalmente a interpretação dos tribunais superiores de determinadas garantias do devedor previstas na legislação federal, em especial o Superior Tribunal de Justiça.
Nesse âmbito, destaca-se a garantia da impenhorabilidade de valores até o limite de 40 salários-mínimos em caderneta de poupança, prevista no artigo 833, inciso X, do Código de Processo Civil (CPC), sob a justificativa de garantir a subsistência do devedor.
No entanto, se discute no STJ a possibilidade de extensão dessa garantia para todo e qualquer ativo financeiro da parte executada, seja em caderneta de poupança, conta corrente, fundo de investimentos ou em papel-moeda, como base no princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso II, da Constituição), que impõe ao Estado e à sociedade o dever de proteger a integridade física, moral e material das pessoas, assegurando-lhes a manutenção de recursos financeiros para assegurar a sua subsistência e a de sua família.
Esse tema está na pauta [1] de julgamentos da Corte Especial, por meio dos Recursos Especiais n° 1.677.144/RS e n° 1.660.671/RS, ambos de relatoria do ministro Herman Benjamin.
Em síntese, a Fazenda Nacional recorre de acórdãos proferidos pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) que determinaram a liberação de valores inferiores a 40 (quarenta) salários-mínimos bloqueados pelo sistema BacenJud, da conta corrente dos recorridos, sob o fundamento de que a cláusula de impenhorabilidade do artigo 833, inciso X do CPC abrange todo e qualquer ativo financeiro, e não apenas os depositados em caderneta de poupança, desde que a seja a única reserva monetária em nome do recorrente, e ressalvado eventual abuso, má-fé ou fraude, a ser verificado caso a caso.
Argumentou o Fisco que não se pode descurar norma fundamental do processo civil, prevista no artigo 4º, do CPC, que preconiza o direito de as partes obterem a solução integral do mérito, incluindo a atividade satisfativa, i.e., satisfação do débito cobrado via judicial.
Pontua que a regra geral que norteia o processo judicial de execução é a busca pela satisfação do crédito do credor (artigo 5º, inciso XXXV, da CF e artigos 797, 824 e 831, todos do CPC) e, como tal, qualquer exceção deve ser interpretada restritivamente. Assevera que o texto da lei não se refere apenas à “poupança”, mas à “caderneta de poupança”, de modo que o legislador repetiu, quase literalmente, a redação do artigo 649, inciso X, do CPC/73.
Por fim, assevera que o entendimento do TRF-4, na verdade, está na contramão da jurisprudência da Corte Especial do STJ, que já teve a oportunidade de afirmar que “só se revela necessária, adequada, proporcional e justificada a impenhorabilidade daquela parte do patrimônio do devedor que seja efetivamente necessária à manutenção de sua dignidade e da de seus dependentes” (EREsp 1582475/MG, relator ministro Benedito Gonçalves, Corte Especial julgado em 3/10/2018, REPDJe 19/3/2019, DJe 16/10/2018).
Nessa toada, no dia 25 de abril de 2023, em julgamento de outro recurso, os Embargos de Divergência em Recurso Especial n° 1.874.222/DF, de relatoria do ministro João Otávio Noronha, a Corte Especial do STJ reconheceu ser possível, em caráter excepcional, “relativizar a regra da impenhorabilidade das verbas de natureza salarial para pagamento de dívida não alimentar, independentemente do montante recebido pelo devedor, desde que preservado valor que assegure subsistência digna para ele e sua família” [2].
É bem verdade que o objeto do julgado acima é mais restrito, pois trata de verbas de caráter alimentar, porém, pode encaminhar o endereçamento da questão pendente de julgamento nos Recursos Especiais n° 1.677.144/RS e n° 1.660.671/RS. Isso porque, prevaleceu o entendimento de que o afastamento do caráter absoluto da impenhorabilidade das verbas de natureza salarial está condicionado apenas ao fato de a medida constritiva não comprometer a subsistência digna do devedor e de sua família, independentemente da natureza da dívida ou dos rendimentos do executado.
De acordo com o Ministro João Otávio Noronha, o legislador, ao suprimir a palavra “absolutamente” do caput do artigo 833, do CPC, passou a tratar a impenhorabilidade como relativa, “permitindo que seja atenuada à luz de um julgamento principiológico, em que o julgador, ponderando os princípios da menor onerosidade para o devedor e da efetividade da execução para o credor, conceda a tutela jurisdicional mais adequada a cada caso, em contraponto a uma aplicação rígida, linear e inflexível do conceito de impenhorabilidade”.
A se confirmar esse entendimento pela Corte Especial no julgamento dos Recursos Especiais n° 1.677.144/RS e n° 1.660.671/RS, i.e., no sentido de que não há impenhorabilidade absoluta de qualquer ativo financeiro de até 40 salários-mínimos, privilegiar-se-á a norma fundamental do processo civil de satisfação do débito cobrado via judicial, verdadeiro alento às mais de 41 milhões de execuções pendentes no Brasil [3].
[1] Os Recursos Especiais foram pautados em duas oportunidades pela Corte Especial nos últimos seis meses, em 07/12/2022 e em 01/03/2023, mas os julgamentos foram adiados. Há grandes expectativas, entretanto, de que em breve a matéria retome para a pauta.