Um colegiado de três juízes conservadores do Tribunal Federal de Recursos da 11ª Região, todos nomeados pelo ex-presidente Donald Trump, decidiu que o estado do Alabama, nos EUA, pode executar a lei que criminaliza o tratamento de afirmação de gênero, tais como terapias hormonais e bloqueadores de puberdade, para menores de 19 anos.
A lei prevê pena de até 10 anos de prisão para profissionais de saúde que oferecerem o tratamento, mesmo que crianças e adolescentes sofram disforia de gênero. Além disso, a lei proíbe procedimentos cirúrgicos para transição de gênero, apesar de profissionais de saúde haverem insistido, em audiências na Assembleia Legislativa, que tais procedimentos médicos não são realizados no Alabama.
A decisão do tribunal federal de recursos reverte decisão da primeira instância, que foi favorável às famílias de transgêneros que processaram o estado logo depois que a lei foi sancionada, em 2022, com o argumento, entre outros, de que a proibição do tratamento de afirmação de gênero causa diversos danos à vida de seus filhos.
O juiz federal Liles Burke, também nomeado por Trump, bloqueou a entrada da lei em vigor, no ano passado, depois de ouvir médicos e outros profissionais que trabalham com transgêneros, que lhe garantiram que o tratamento para afirmação de gênero é seguro e fundamental para o bem-estar de crianças e adolescentes.
“Os registros mostram que pelo menos 22 das principais associações médicas dos Estados Unidos endossam a medicação para transição de gênero, como tratamentos baseados em estudos e bem-estabelecidos para disforia de gênero em menores”, escreveu o juiz em sua decisão.
Para a juíza Barbara Lagoa, relatora da decisão do tribunal federal de recursos, isso não basta. Ela escreveu que “as decisões que aplicam o direito fundamental dos pais, no contexto de tomada de decisão médica, não estabelecem que os pais têm um direito fundamental derivativo de obter um tratamento médico particular para seus filhos, a não ser que uma massa crítica de profissionais de saúde o aprove”.
A juíza argumentou também que os casos passados de devido processo não estabelecem um direito fundamental ao tratamento de afirmação de gênero, associando o caso à decisão da Suprema Corte, em Dobbs v. Jackson Women’s Medical Center, que anulou Roe v. Wade, o precedente que legalizou o aborto em todo o país.
A juíza citou a teoria do ministro Samuel Alito de que “a cláusula do devido processo só protege direitos que estejam profundamente enraizados na história e tradição da nação”. Ela escreveu:
“Apesar de existir registros de transgêneros ou outros de indivíduos inconformados com seu gênero em vários pontos da história, os primeiros usos registrados de medicação bloqueadora de puberdade e de terapias hormonais, para o propósito de tratar a discordância entre o sexo biológico de um indivíduo e o sentido de identidade de gênero, não existiram até um ponto avançado do Século XX”.
Em suas reportagens, os jornais se perguntaram por que os tribunais de recurso e a Suprema Corte não banem a compra e o porte de fuzis de ataque, como AR-15 e AK-47, se essas armas só foram inventadas em um ponto avançado do Século XX. O uso desses fuzis não está profundamente enraizado na história e tradição da nação.
Êxodo estadual
Até agora, 20 dos 50 estados dos EUA, todos republicanos (red states), quase todos do Centro-Sul do país (os ex-confederados da Guerra Civil), aprovaram leis semelhantes, umas mais, outras menos rigorosas – quase todas sendo disputadas na justiça, com decisões pró e contra o tratamento de afirmação de gênero. Assim, os processos vão seguir seu curso até a Suprema Corte.
Na mais alta corte do país, a maioria conservadora poderá se apegar à teoria das raízes profundas da história e tradição da nação – ou não. De qualquer forma, as famílias com crianças e adolescentes transgêneros começam a se preparar para emigrar para estados democratas (blue states), que asseguram proteção a transgêneros de todas as idades.
Elas querem fugir do ódio e da intolerância e garantir o bem-estar de seus filhos, declarou Cordelia Diamond, mãe de dois filhos, ambos transgêneros, ao jornal Alabama Reflector. Ela disse que o cenário é traumático para as crianças e mais ainda para os adolescentes.
“As mães de menores transgêneros reclamam que dizem a seus filhos que não são bem-vindos nas escolas e nas igrejas. Agora o estado nos diz, pela lei que está impondo, que não quer menores transgêneros. Ou saímos voluntariamente ou nos obrigam a sair”, ela disse ao jornal, refletindo o sentimento das famílias que processaram o estado.
Curiosamente, o estado do Alabama colocou no nome da lei a palavra “compaixão”: ela se chama “Lei da Compaixão e Proteção de Crianças Vulneráveis” (Vulnerable Child Compassion and Protection Act).
Cerca de 1,03% da população adulta dos Estados Unidos – ou aproximadamente 2,6 milhões de pessoas, se identificam como transgêneros, segundo levantamento do Household Pulse Survey, citado pelo site US FACTS.
Com informações do Alabama Reflector, AL.com, The Guardian, The Intercept, PBS, USA FACTS e CNN
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.