Nesse segundo semestre de 2023, o professor Inocêncio Mártires Coelho deixou a docência, aposentando-se do Centro Universitário de Brasília (Ceub), onde lecionamos junto ao longo desses últimos dez anos.
Foi procurador-geral da República (1981-1985), lecionou na Universidade de Brasília, é um dos fundadores do IDP (ao lado do Ministro Gilmar Mendes e de Paulo Gonet Branco, de quem foi professor na UnB), bem como é autor de vários importantes livros de nossa reminiscência jurídica, a exemplo de “Interpretação Constitucional”, entre tantos outros. Tem uma legião de seguidores e de admiradores. Eu me incluo nessa lista.
A propósito da aposentadoria de Inocêncio circulei uma carta minha, a ele endereçada, e que também circulei entre colegas do magistério. Nos Embargos Culturais dessa semana, espaço de cultura (geral e jurídica) divulgo essa missiva, também como forma de homenagem:
“Os livros têm o seu destino (habent sua facta libelli). É com essa ideia que percebi que todos os tomos da biblioteca de Inocêncio Mártires Corelho pareciam estar no lugar certo; na organização (desorganizada, porque biblioteca organizada é biblioteca não lida) e na estrutura do pensamento, que revelava a leitura atenta e pausada, de todos aqueles livros.
Inocêncio é um dos poucos que, à frente da biblioteca própria, podem responder a estulta pergunta de que não sabe o que significa ler: ‘já leu todos esses livros?’ Inocêncio já leu todos. Leu tudo. E leu como um herbívoro calmo e paciente, e não como um carnívoro onipotente.
Na experiência intelectual de Inocêncio a leitura é como a respiração: não se trata de uma atividade esporádica, é permanente e constante. Inocêncio lê como quem respira, o tempo todo, inclusive o livro do mundo.
A proximidade com seus livros (lidos e escritos) revela intermináveis rastros de leitura. Inocêncio é um homem de livros, de leituras e de letras.
No trato diário fala sobre livros, sobre autores, sobre ideias. Conhece os antigos (e conviveu com muitos, a exemplo de Roberto Lyra Filho) e conhece os novos, porque Inocêncio, no frescor de sua mente ininterruptamente iluminada, é um novo. Mais: é um novíssimo!
Na sala de aula Inocêncio não se transforma. Permanece em sua imutável essência de ‘scholar’, ao mesmo tempo cosmopolita, e ao mesmo tempo grudado nos problemas da província. É que sabe que a vida é o aqui, o agora, a rua onde moramos. Inocêncio discute a transcendência ao mesmo tempo em que vive na imanência.
Intui, como poucos, que o aqui e o ali e o agora e o sempre se confundem. Inocêncio é, ao mesmo tempo, o dedo que aponta o infinito e a mão que acaricia o chão, fazendo de sua trajetória intelectual uma síntese dos dois grandes filósofos que Rafael Sânzio pintou logo no meio da Escola de Atenas. Sócrates não está no quadro. Existencialmente, talvez tenha nascido em algum lugar do Pará (Inocêncio é de Belém), e vivido, entre nós, no Planalto Central. Inocêncio, menos do que a ligação desse jogo de palavras, substitui o filósofo faltante. Inocêncio, certamente, está no Palácio Apostólico, no Vaticano, onde se encontra esse deslumbrante afresco do urbinense. É o Sócrates faltante.
Inocêncio parece ter sempre a palavra e o afeto que sempre esperamos. No fecho de seus e-mails, a referência a um abraço, que sempre adjetiva como fraterno e cheio de afeto. O convívio com Inocêncio, ainda que marcado pela descontinuidade (nós professores não nos encontramos todos os dias) é marcado por essa extrema afeição, no sentido fraternal da amizade sincera (que é permanente quando acontece, assim como o amor é infinito enquanto dura, como lemos no último verso do soneto da fidelidade).
Testemunho a atenção de Inocêncio, que me socorreu com palavras e indicações e conjecturas, em momento difícil de minha vida. Testemunho o comprometimento de Inocêncio com os desafios da academia, em inúmeras bancas. Espécie acadêmica rara, em vias de extinção, Inocêncio mesmerizava as bancas com a arguição redigida, lida, escorreita, impecável. O examinando lutava pelo papel, que certamente valeria (do ponto de vista emocional e introspectivo) mais do que a própria ata de aprovação. A arguição escrita de Inocêncio, é um prêmio, uma inspiração, uma voz de comando.
Dia desses, tive a notícia, do próprio Inocêncio, de que deixaria as aulas. Estou certo de que não deixa os alunos, os amigos, os livros e os discípulos e o magistério universal. Quando li a mensagem, relativa à aposentadoria do grande mestre, senti, verdadeiramente, o impacto do tempo sobre minha vida, revivi os momentos de tanto aprendizado, vivi o arrependimento de não ter aproveitado mais o convívio e, naquele momento, já sentia saudade e também sentia saudades. Muita e muitas.
Te abraço Amigo e, simplesmente, te agradeço por existir.
Arnaldo Godoy”
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. É sócio do escritório Hage, Navarro & Godoy.