Vagetti e Sanches: Controle de despesas e a “Lei do Bem”

O benefício fiscal relacionado à inovação tecnológica conhecido como “Lei do Bem” foi instituído pela Lei nº 11.196/05 [1] e posteriormente regulamentado pelo Decreto nº 5.798/06 [2] e disciplinado pela Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil nº 1.187/11 [3].

Referido corpo legislativo se mostra como um importante instrumento de fomento à atividade de PD&I e reflete a partir deste conjunto os valores e os princípios que o Estado brasileiro pretende alcançar, os quais se relacionam com a promoção da autonomia tecnológica, o desenvolvimento científico e tecnológico, e por consequência, o próprio desenvolvimento nacional.

Para se ter uma ideia do impacto do benefício nas atividades de PD&I, em outubro de 2023 foi divulgado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) que no ano-base de 2022 o setor privado investiu mais de R$ 35 bilhões em pesquisa e desenvolvimento [4].

Sob a perspectiva tributária, para o gozo do benefício em comento a legislação exige que: 1) a empresa seja tributada pelo lucro real; 2) comprove regularidade fiscal; e 3) apresente lucro fiscal no período correspondente [5]. Além disso, estão contemplados na legislação os seguintes tratamentos tributários diferenciados: 1) exclusão adicional de 60% a 100% dos dispêndios realizados no período de apuração com pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica classificáveis como despesas operacionais pela legislação do IRPJ; 2) redução de 50% do IPI incidente sobre equipamentos, máquinas, aparelhos e instrumentos, bem como os acessórios e ferramentas que acompanhem esses bens, destinados à pesquisa e ao desenvolvimento tecnológico; 3) depreciação e amortização integral e acelerada no ano de aquisição ou da realização dos dispêndios dos bens utilizados para PD&I; e 4) redução à zero da alíquota do IRRF incidente sobre remessas ao exterior para manutenção de marcas e patentes.

Nesse contexto, cabe mencionar que o inciso I do artigo 22 da Lei do Bem estabelece que os dispêndios e pagamentos realizados no âmbito das atividades de PD&I serão controlados contabilmente em contas específicas.

A partir dessa disposição legal, o entendimento administrativo majoritário [6], pautado pelas previsões do artigo 111 do Código Tributário Nacional [7], é no sentido de que caso a empresa beneficiária não adote o controle por conta contábil específica (ainda que se utilize de algum outro meio idôneo de controle), resta caracterizada o descumprimento das obrigações estabelecidas na Lei, implicando em última instância na perda do direito ao gozo do benefício.

Ocorre que o artigo 111 do CTN não pode ser lido como impeditivo para a utilização do benefício objeto da presente análise. Até porque a expressão “interpretação literal” se revela como um verdadeiro paradoxo, pois ao mesmo tempo que se manifesta como uma conduta necessária, porquanto se trata de etapa indispensável no processo de interpretação, é impossível que ocorra por parte do aplicador, que não fica subordinado ao plano sintático da linguagem para construir sentidos [8].

Nas lições da professora Regina Helena Costa [9], o referido comando legal pretendeu prestigiar os princípios da isonomia e da legalidade tributária, objetivando afastar um indevido alargamento do conteúdo normativo ao invés de inviabilizar a sua utilização. Na mesma direção é o posicionamento do professor Renato Lopes Becho [10] ao elencar que:

“(…) não vemos como razoável um dispositivo legal que determine a interpretação literal de nenhum texto normativo. O artigo 111 do CTN, ao determinar a interpretação literal para suspensão ou exclusão do crédito tributário, outorga de isenção e dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias, desorganiza a harmonia sistêmica do Direito Tributário, que parte dos princípios constitucionais tributários. A negativa de aplicação das técnicas interpretativas dadas pela ciência do direito e pela teoria geral do direito, a partir do Direito Tributário, compromete a importância da codificação tributária. (…) a melhor solução, diante do art. 111 do CTN, é compatibilizá-lo com os princípios constitucionais tributários”.

Além disso, já em 1972 o item 9 do Parecer Normativo CST nº 282/72 [11] pontuou que “literal disposição de lei” e “interpretação literal” não significam abstração de recursos de hermenêutica outros que não a pura interpretação gramatical. Isso nos leva a crer que o dispositivo legal busca impedir que o intérprete e/ou o aplicador recorram à analogia e à equidade (observância ao princípio da legalidade), sem, contudo, impor um único método de interpretação. A própria Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), por meio do Parecer PGFN nº 1.495/01 [12], dispôs que:

“22. Não que se defenda a interpretação absurdamente restritiva, ou excessivamente apegada à literalidade da lei, porque não nos parece ser esse o método hermenêutico mais inteligente e consentâneo com Ciência do Direito. Com efeito, o exame da norma, mesmo a concessiva de favor fiscal, deve valer-se de todos os elementos interpretativos, de forma a se aproximar o máximo possível do seu verdadeiro sentido e alcance. Entendo, particularmente, não ser o mandamento do artigo 111 do CTN impeditivo do exame percuciente da norma jurídica”.

No âmbito do Poder Judiciário [13] é possível identificar manifestações no sentido de que a denominada “busca real” do significado e alcance dos benefícios fiscais não caracteriza ofensa ao artigo 111 do CTN.

Dessa forma, ante o exposto, considerando todo o aparato tecnológico existente (por exemplo: sistemas ERP, EFD, ECF, entre outros), combinado com a complexidade e o elevado número de operações realizadas pelas empresas, não nos parece adequado (beirando até mesmo à inconstitucionalidade [14]) que uma empresa que invista em PD&I não possa gozar do benefício fiscal da Lei do Bem simplesmente por não computar em determinadas contas contábeis [15] os valores dos dispêndios alocados em projetos desta natureza (desde que, evidente, tenha meios idôneos e consistentes para comprovar os valores em questão).

 


[4] Os valores foram obtidos por meio das informações disponibilizadas no “Formulário de Informações sobre Atividades PD&I da Lei do Bem (FormP&D)”, que corresponde ao documento necessário para que o beneficiário se aproveite dos incentivos fiscais previstos na Lei do Bem, enviado em 2023 por mais de 3.400 empresas.

Agência GOV. Tecnologia. Empresas beneficiadas pela Lei do Bem investiram R$ 35 bi em pesquisa e inovação em 2022. Conteúdo disponível em: <Empresas beneficiadas pela Lei do Bem investiram R$35 bi em pesquisa e inovação em 2022 — Agência Gov (ebc.com.br)>. Acesso em 05 de out. 2023.

[6] A título de exemplo vide acórdãos Carf: 1003-003.667 de 15 de junho de 2023, 1401-006.411 de 14 de março de 2023 e 1401-005.542 de 20 de maio de 2021.

[7] Artigo 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre:

I – suspensão ou exclusão do crédito tributário;

II – outorga de isenção;

III – dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias.

[13] A título de exemplo vide REsp nº 841.330/CE, REsp nº 1.125.064/DF, e REsp nº 1.109.034/PR.

Daniel Piga Vagetti é advogado, contador atuante no consultivo tributário, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e mestrando em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP).

Larissa de Melo Clemêncio Sanches é contadora atuante no consultivo tributário e especialista em International Financial Reporting Standards (IFRS).

Consultor Júridico

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