Vanessa Alvarez: The independent state legislature theory

No último dia 27 junho a Suprema Corte dos Estados Unidos rejeitou, por maioria [1], a “teoria da legislatura estadual independente” (the independent state legislature theory — ISL [2]) no âmbito do julgamento de Moore v. Harper, o que reforça a competência dos tribunais estaduais para fiscalizar a delimitação das fronteiras distritais a cada censo decenal do federalismo centrípeto estadunidense.

1 – “A Law repugnant to the Constitution is void” (Chief Justice Marshall)

A competência da Suprema Corte estadunidense e o judicial review

Nas primeiras páginas de Moore v. Harper foi registrado o precedente Marbury v. Madison [3], histórico e célebre por ter confirmado a possibilidade do controle incidental de constitucionalidade [4] no âmbito federal. Naquela oportunidade, a Constituição deixou de ser tão somente uma fundamental law para se tornar uma paramount law [5].

Em 1803 o judicial review [6], por meio do controle difuso de constitucionalidade, consolidou-se no precedente Marbury v. Madison, quando o Chief Justice Marshall destacou que: “Uma lei repugnante à Constituição é nula”.

Essa foi a primeira vez que a Suprema Corte estadunidense declarou inconstitucional uma lei aprovada pelo Congresso e promulgada pelo Presidente. Nada na Constituição dava à Suprema Corte esse poder específico. Marshall, entretanto, acreditava que a Suprema Corte deveria ter um papel igual ao dos outros dois poderes do governo (“checks and balances” ou “il faut que le pouvoir arrête le pouvoir”).

No decisum o Justice John Roberts [7] anunciou: “Desde o início da história de nossa nação, os tribunais reconhecem seu dever de avaliar a constitucionalidade dos atos legislativos.  Anunciamos a nossa responsabilidade de analisar leis que supostamente violam a Constituição Federal no caso Marbury v. Madison”.

Igualmente, ele ressaltou o importante papel dos “founding fathers” na obra denominada “Federalist Papers”, quando Alexander Hamilton sustentou que os “tribunais de justiça” têm o “dever de declarar nulos todos os atos contrários ao teor manifesto da Constituição” [8].

2 – “Gerrymandering” e a regra “one-person-one-vote”

Nos termos do artigo I, seção 2 da Constituição estadunidense a cada decênio deve ser realizado um censo com a finalidade de redesenhar as linhas que limitam os distritos legislativos a nível federal e estadual (“redistritamento”).

No governo federal, cada estado conta com a representação de dois senadores, mas os 435 assentos da Câmara dos Deputados são divididos entre os estados com base na sua população.

A delimitação dos mapas eleitorais pode variar conforme a legislação estadual. Em alguns, o poder legislativo estadual elabora a métrica com ou sem o aval do governador respectivo. Em outros, uma comissão independente [9].

Nessa medida, os estados que “ganham” habitantes mais rapidamente do que outros também ganham representantes adicionais na Câmara, e aqueles cujas populações crescem menos rapidamente ou diminuem perdem representantes [10].

Após o recenseamento de 2020, cinco estados ganharam um lugar na Câmara (Colorado, Florida, Montana, Carolina do Norte, Oregon) e o Texas ganhou dois. Sete estados perderam um assento na Câmara (Califórnia, Illinois, Michigan, Nova Iorque, Ohio, Pensilvânia e Virgínia Ocidental).

É conhecida por “gerrymandering”  fruto de neologismo entre o sobrenome do então governador de Massachusetts Elbridge Gerry  com a palavra “salamander”  a prática utilizada pela primeira vez em 1812 no Boston Gazette para satirizar a manipulação das fronteiras eleitorais e conceder vantagem indevida a um grupo político em detrimento de outro [11].

O mapa de eleitores desenhado pelo governador Gerry tinha a aparência de uma salamandra (salamander), o que levou o cartunista a criar a palavra “gerrymander” e, consequentemente, o ato de manipular os mapas distritais ficou conhecido como “gerrymandering”.

John Kasich, em sua contribuição como “amicus curiae” no caso Gill v. Whitford, afirmou que: “…o gerrymandering partidário é inconstitucional, está prejudicando nossos governos e pode prontamente ser identificado e tratado pelos tribunais. (…) Essa história se repete pelo país a cada década e só vem piorando. (…) Mirar eleitores específicos com base em sua afinidade partidária retirando deles o seu poder político vai além do mero embate partidário e viola ambas a Primeira e a Décima Quarta Emendas constitucionais” [12].

Elbridge Thomas Gerry foi vice-presidente dos Estados Unidos no período entre 1813 e 1814 e também um dos signatários da Declaração de Independência e dos Artigos da Confederação. Além disso, foi um dos três homens que se recusaram a assinar a Constituição porque não tinha uma Carta de Direitos [13].

Segundo o estudo Gerrymandering Project [14] (Princeton University) o “gerrymandering” pode ser efetivado por meio de duas técnicas: “cracking” e “packing”  em tradução livre do inglês: fraturar e empacotar  e são objetos de estudo do especialista Kenny J. Whitby (2000, p. 115).

O “cracking” se baseia na fragmentação de determinado eleitorado em vários distritos com a finalidade de diluir o seu voto, o que neutraliza a força eleitoral em cada um deles. Por sua vez, o “packing” refere-se ao processo de “redistritamento” que visa concentrar eleitores semelhantes de diversas regiões em uma grande instância eleitoral, isolando-os do eleitorado do grupo beneficiado em outros distritos.

3 – One person, one vote?

A regra constitucional em questão é o artigo 1˚, seção 4 da Constituição dos Estados Unidos da América, em que se lê em tradução livre: “Os tempos, locais e formas de realizar eleições para senadores e deputados serão prescritos em cada Estado pela respectiva legislatura; mas o Congresso pode, a qualquer momento, por lei, fazer ou alterar esses regulamentos, exceto no que se refere aos locais de eleição dos senadores” [15].

O procedimento de “redistritamento” é responsabilidade das autoridades estaduais, exceto em treze estados que delegam a tarefa a uma comissão independente [16].

Na prática, o partido que obtiver a maioria dos parlamentares estaduais poderá “redesenhar” os distritos, o que pode favorecer as chances de reeleição de quem já está no poder.

Todavia, esse método contraria um princípio consagrado nos Estados Unidos de “um eleitor, um voto” (one person, one vote). Em 1964, sob a presidência de Earl Warren, a Suprema Corte dos EUA, diante do caso Reynolds v. Sims, decidiu pela obrigatoriedade dos distritos eleitorais abrangerem uma população aproximadamente igual [17]

4 – The independent state legislature theory (ISL) em Moore v. Harper

Os defensores da “teoria da legislatura estadual independente” (the independent state legislature theory [18]) alegam que os tribunais estaduais não possuem autoridade para julgar eventuais questionamentos sobre as legislaturas estaduais.

A rejeição da “teoria da legislatura estadual independente” significa o fortalecimento do sistema de freios e contrapesos (checks and balances), na medida em que impõe o dever de respeito à Constituição estadual e aos poderes instituídos neste âmbito, sem prejuízo do controle federal.

No precedente estabelecido em Moore v. Harper acompanharam o voto do Presidente da Suprema Corte, John Roberts, os juízes Sonia Sotomayor, Elena Kagan, Ketanji Brown Jackson, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett. Por outro lado, os juízes Clarence Thomas, Samuel Alito e Neil Gorsuch discordaram da rejeição do argumento apresentado.

A interpretação constitucional adotada pelo Chief Justice John Roberts foi no sentido de que o contexto deve ser analisado no caso concreto e ressalvou que “(…) os tribunais estaduais não podem transgredir os limites normais da revisão judicial de modo a arrogarem-se o poder conferido às legislaturas estaduais para regular as eleições federais” [19].

Vale ressaltar que, caso a Suprema Corte dos Estados Unidos tivesse adotado a teoria a consequência seria a alteração das eleições para o Congresso  e potencialmente as eleições presidenciais  até 2024.

Portanto, a rejeição da teoria da legislatura independente significou a consolidação do poder dos tribunais estaduais de rever as leis eleitorais ao abrigo das constituições estaduais, ao mesmo tempo em que instou os tribunais federais a “não abandonarem o seu próprio dever de exercer a revisão judicial”.

Vanessa Alvarez é advogada do escritório Zanin Martins Advogados, especialista em Direitos Humanos e Direito Constitucional, mestre em Direito Internacional na Universidade Paris 1 Panthéon—Sorbonne e secretária-geral do Lawfare Institute.

Consultor Júridico

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