Se há um modelo jurídico constitucional que sofreu uma profunda mutação desde a entrada em vigor da Constituição da República Federativa do Brasil, em 5 de outubro de 1988, é certamente aquele que dispõe sobre a jurisdição constitucional. Mutação esta que tem natural reflexo em todo o sistema do Direito Positivo.
Foi opção do poder constituinte colocar o Supremo Tribunal Federal como guardião máximo e último dos modelos jurídicos veiculados pela Constituição da República [1]. Instituiu-se um modelo de controle jurisdicional concentrado [2] e abstrato [3] de constitucionalidade das leis [4] que passou a conviver com o modelo de controle jurisdicional incidental [5] e concreto [6] delas.
Recorde-se que o modelo de controle incidental e concreto de constitucionalidade surgiu no Brasil com o Decreto Federal nº 848, de 11 de outubro de 1890, e se consolidou na Primeira República com a vigência da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, em 24 de novembro de 1891. Já a primeira experiência brasileira com o modelo de controle concentrado e abstrato de constitucionalidade surge com a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946, mas sob a tutela do Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964.
Alerte-se ainda que o Supremo Tribunal Federal concentra competências jurisdicionais civis e penais sobre matérias relevantes da República [8], sem prejuízo dos incentivos naturais que a extensão do texto constitucional produz para se levar demandas a esse tribunal.
Anote-se também que, com a Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004 [9], conjugada com várias inovações legislativas no plano processual [10], a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre suas próprias competências foi chancelada pelo Poder Legislativo. Assim, dentre outras mutações, transformou-se todo controle de constitucionalidade em abstrato, independentemente de sê-lo concentrado ou difuso. Basta examinar o atual modelo jurídico de recurso extraordinário [11].
Ainda nesse aspecto, há um considerável espaço para que um ministro do Supremo Tribunal Federal, em decisão monocrática, de natureza cautelar, possa determinar a suspensão de uma lei [12]. Por conseguinte, uma autoridade da República tem o poder para suspender solitariamente o que foi o resultado do processo legislativo, que envolve o presidente da República e o Congresso Nacional.
Por fim, registre-se que não há instrumentos jurídicos na Constituição da República que permitam ao Poder Executivo ou ao Poder Legislativo desconstituir a validade das decisões do Poder Judiciário e, naturalmente, do Supremo Tribunal Federal. É o que usualmente se espera do Estado de Direito, que tem dentre seus princípios fundamentais a independência dos magistrados.
Contudo, a independência do magistrado deve ser acompanhada de modelos jurídicos sancionadores que sirvam de desincentivo para o abuso de poder e que fomentem o máximo possível a sua imparcialidade. Em rigor, não há instrumentos efetivos de responsabilização dos ministros do Supremo Tribunal Federal pelo descumprimento dos deveres dos magistrados [13], e o Senado Federal tem incentivos para deixar de processá-los e julgá-los por crimes de responsabilidade, dada a competência jurisdicional penal desse tribunal [14].
Nesse contexto jurídico, o poder político do Supremo Tribunal Federal sofreu tamanha hipertrofia, a ponto de ser impossível negar que esse tribunal e seus membros passaram a ser efetivamente os editores da sociedade ou a vanguarda da transformação social. Embora ele seja exercido em nome do Estado Democrático de Direito, o que ele promove é desidratação deste num Estado Juristocrático [15].
Um exemplo emblemático desse fenômeno se encontra no modo como a técnica da interpretação conforme a Constituição passou a ser realmente aplicada na jurisdição constitucional brasileira.
Ao se examinar a Constituição da República, verifica-se que a sua força normativa pressupõe a sujeição de todos os modelos jurídicos (legislativos, jurisprudenciais, consuetudinários ou negociais) aos modelos jurídicos legislativos ditados pelo poder constituinte ou pelo Poder Legislativo, quando este decide emendar validamente o texto constitucional. E, para se garantir justamente tal força normativa, instituiu-se a jurisdição constitucional e seu órgão máximo, o Supremo Tribunal Federal.
Não se perca de vista que a jurisdição constitucional é indispensável para a proteção dos direitos fundamentais, tanto nas relações entre Estado e administrado, como nas relações entre os administrados; assim como, ela é imprescindível para a preservação e operacionalidade do sistema de governo, da forma de governo e da forma de Estado instituídos pela Constituição da República.
Segundo a técnica da interpretação conforme a Constituição, o Poder Judiciário deve preservar a validade da lei, caso seja possível interpretar seu texto de modo a dar um sentido compatível com o modelo jurídico constitucional que lhe serve de fundamento ou que possa ser lesionado com a sua aplicação. Assim, as palavras ou expressões legais podem ser ampliadas ou restringidas de modo a viabilizar a aplicação da lei sem comprometer a força normativa da Constituição da República nas situações regidas pelo ato legislativo em apreço.
Não há como se rejeitar a racionalidade desse mecanismo hermenêutico, nem sua contribuição para a estabilidade do sistema do Direito Positivo. Mesmo assim, a interpretação conforme a Constituição não deve existir para que o Supremo Tribunal Federal usurpe as competências do Poder Legislativo, do Poder Executivo e dos demais órgãos do próprio Poder Judiciário.
O texto legal é o ponto de partida obrigatório para o processo de identificação da norma jurídica veiculada pela lei. E, cada palavra, cada expressão, tem uma órbita mínima de sentido, sem a qual ela não teria qualquer serventia na comunicação. Mesmo que se reconheça que o sentido da palavra ou expressão possa variar conforme o contexto socioeconômico ou técnico-científico, ou que ele se amplie ou se restrinja conforme o desenvolvimento (ou subdesenvolvimento) da sociedade, sem essa permissa não seria possível a convivência humana.
Isso pode ser rigorosamente dito quanto ao texto constitucional, quando se quer identificar a norma jurídica veiculada pela Constituição da República.
É perfeitamente possível que quem tenha redigido o texto legal tenha tido o cuidado de especificar de forma clara e inequívoca o sentido que se deve atribuir à palavra ou expressão nele empregada. E, claro, a opção do legislador pode ter sido infeliz, injusta, pouco inteligente ou alienada da realidade socioeconômico ou técnico-científica, tornando o texto legal e, portanto, a norma que por meio dele se quis inserir no sistema do Direito Positivo, imprestável do ponto de vista axiológico ou sociológico.
Assim, a interpretação conforme a Constituição pressupõe que o texto legal possa servir de base para uma norma legal que não produza antinomia com a norma constitucional. Quando o intérprete imputa sentidos à palavra que ela não pode ter, o que se está a fazer não é interpretar o texto legal, mas sim modificá-lo segundo os interesses do próprio intérprete. Tudo isso sem o ônus do devido processo legislativo, especialmente quando o intérprete é o próprio Supremo Tribunal Federal.
Ademais, o Supremo Tribunal Federal tem o poder para declarar parcialmente a inconstitucionalidade da lei, retirando-lhe palavras ou expressões, prerrogativa que não se enquadra na interpretação conforme a Constituição [16]. E, ao modificar palavras ou expressões do texto legal, ou ao acrescentá-las, o que o tribunal está realmente a fazer é fazer a lei no lugar do Poder Legislativo, e não interpretação conforme a Constituição [17].
Logo, quando o texto legal é imprestável, impõe-se a declaração da inconstitucionalidade da lei, e não a sua transformação segundo o interesse de quem esteja investido de competência jurisdicional.
A situação se torna mais complexa quando o texto constitucional não agrada, ou deixou de agradar por alguma razão o Supremo Tribunal Federal.
É certo que a norma constitucional deve ser identificada a partir da conjugação do texto constitucional com o contexto socioeconômico e técnico-científico do sistema do Direito Positivo e seus desenvolvimentos (ou subdesenvolvimentos). Se o texto constitucional se tornou imprestável em algum ponto, a Constituição da República determina que ele deva ser reformado por meio de emenda constitucional, observados os limites ao poder de reforma que ela mesmo estabeleceu [18]. Limites estes que tornam algumas parcelas do texto constitucional insuscetíveis de modificação, a qualquer tempo, por decisão do poder constituinte, enquanto vigorar a Constituição da República.
Adotando-se uma perspectiva realista, a Constituição da República e suas emendas estabelecem apenas uma parte dos modelos jurídicos constitucionais que compõem o sistema do Direito Positivo brasileiro. Em verdade, a Constituição brasileira é formada pelos modelos jurídicos legislativos ditados pelo poder constituinte ou pelo poder de reforma constitucional, conjugados ou submetidos aos modelos jurídicos jurisprudenciais determinados pelo Supremo Tribunal Federal [19].
Quer se queira, quer não, hoje os modelos jurídicos jurisprudenciais do Supremo Tribunal Federal são hierarquicamente superiores a todos os demais modelos jurídicos que integram o ordenamento jurídico brasileiro.
O que, em termos práticos, torna o texto constitucional algo acessório ou opcional em face da concepção político-jurídica dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Consequentemente, o texto constitucional pode ser deixado de lado, em prol da interpretação que o magistrado deu aos textos político-jurídicos de sua preferência.
Noutro giro: o texto constitucional deixa de ser o ponto de partida para identificação da norma constitucional, sendo substituído pela interpretação do texto político-jurídico eleito pelo Supremo Tribunal Federal [20].
Consequentemente, a técnica da interpretação conforme a Constituição se tornou um artifício retórico para justificar a substituição do poder constituinte pelo poder político do Supremo Tribunal Federal, quando isso convém aos seus ministros. Afinal, não é a Constituição da República o que se visa guardar aqui, mas sim alguma das 14 constituições supremas que se encontram em vigor, conforme o caso.
A saber: (1) 11 ministros do Supremo Tribunal Federal; (2) duas Turmas do Supremo Tribunal Federal; e (3) o pleno do Supremo Tribunal Federal.
Progressivamente, chegou-se à era da Constituição conforme a interpretação.
[1] Vide o art. 102, caput, da Constituição da República.
[2] No controle concentrado de constitucionalidade, a ação deve ter por objeto principal a validade constitucional de lei.
[3] No controle abstrato de constitucionalidade, a decisão é definitiva quanto à validade constitucional de lei, mantendo-a, eliminando-a ou consolidando o seu sentido em todo o sistema do Direito Positivo.
[4] No Brasil, entenda-se por lei uma das espécies normativas constantes do art. 59 da Constituição da República. Entretanto, ato normativo infralegal do Poder Executivo também pode objeto de controle jurisdicional de constitucionalidade.
Vide o art. 102, I, “a”, §§ 1º e 2º, o art. 103, e o art. 125, § 2º, todos da Constituição da República.
[5] No controle incidental de constitucionalidade, a ação tem por objeto lesão ou ameaça a direito, que envolve a validade constitucional de lei, que foi aplicada ou que está na iminência de ser aplicada ao caso concreto.
[6] No controle concreto de constitucionalidade, a decisão fixa a interpretação da validade da lei para o caso concreto, ou suspende a sua aplicação ao mesmo, mas sem retirá-la do sistema do Direito Positivo.
[7] “Organiza a Justiça Federal”.
[8] Vide o art. 102, I, “b” a “j”, “m” a “o”, e “r”, e II, da Constituição da República.
[9] “Altera dispositivos dos arts. 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal, e acrescenta os arts. 103-A, 103B, 111-A e 130-A, e dá outras providências”.
[10] Vide a Lei Federal nº 9.868, de 10 de novembro de 1999 (“Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal”).
Vide a Lei nº 9.882, de 3 de dezembro de 1999 (“Dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1º do art. 102 da Constituição Federal”).
Vide a Lei Federal nº 11.417, de 19 de dezembro de 2006 (“Regulamenta o art. 103-A da Constituição Federal e altera a Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, disciplinando a edição, a revisão e o cancelamento de enunciado de súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal, e dá outras providências”).
Vide a Lei Federal nº 13.105, de 16 de março de 2015 (“Código de Processo Civil”).
Vide a Lei Federal nº 13.300, de 23 de junho de 2016 (“Disciplina o processo e o julgamento dos mandados de injunção individual e coletivo e dá outras providências”).
[11] Vide o art. 102, III, e § 3º, da Constituição da República.
Vide o Código de Processo Civil.
[12] Vide o art. 102, I, “p”, da Constituição da República.
Vide o art. 10, caput, da Lei Federal nº 9.868/1999.
Vide o art. 5º, § 1º, da Lei Federal nº 9.882/1999.
[13] Vide o art. 93 e o art. 103-B, § 4º, ambos da Constituição da República.
Vide os arts. 35 a 39 da Lei Complementar Federal nº 35, de 14 de março de 1979 (“Dispõe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional”).
Vide Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.367, tribunal pleno, relator ministro Cezar Peluso, publicado em 22 de setembro de 2006.
[14] Vide o art. 52, II, e o art. 102, I, “b”, ambos da Constituição da República.
Vide o art. 2º, e os arts. 39 e 39-A, todos da Lei Federal nº 1.079, de 10 de abril de 1950 (“Define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento”).
[15] No Estado Juristocrático, todo o poder está concentrado nas mãos do tribunal competente para a jurisdição constitucional, não havendo garantia de direitos contra ele.
Sobre a matéria, consultar: HIRSCHL, Ran. Rumo à juristocracia: as origens e consequências do novo constitucionalismo. Tradução de Amauri Feres Saad. Londrina: Editora EDA, 2020.
[16] É interessante que o veto presidencial parcial somente pode abranger texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea, nos termos do art. 64, § 2º, da Constituição da República.
[17] Vide, por exemplo, Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.298, relator ministro Luiz Fux, julgado em 24 de agosto de 2023.
[18] Vide o art. 60 da Constituição da República.
[19] Sobre a matéria, consultar: FRANÇA, Vladimir da Rocha. Crise da legalidade e jurisdição constitucional: o princípio da legalidade administrativa e a vinculação do Estado-Administração aos direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2023.
[20] Vide o art. 5º, XXXIX, o art. 22, I, o art. 48, caput, o art. 59, I e III, o art. 226, § 3º, todos da Constituição da República.
Vide Supremo Tribunal Federal, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, relator ministro Ayres Britto, publicado em 14 de outubro de 2011.
Vide Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26, relator ministro Celso de Mello, publicado em 6 de outubro de 2020.
Vladimir da Rocha França é advogado, mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco, doutor em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor titular de Direito Administrativo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.