O Estado democrático de Direito se caracteriza pela existência de limites rígidos e instransponíveis ao exercício do poder. De qualquer poder. O principal desses limites é a exigência de se respeitar os direitos fundamentais, que devem ser percebidos como trunfos contra a opressão estatal. Cada direito fundamental violado é um passo em direção ao autoritarismo.
No Brasil dos últimos tempos, alguns atores jurídicos passaram a tratar os direitos fundamentais das pessoas rotuladas como inimigas (adversários políticos, lideranças de movimentos sociais, desempregados etc.) como obstáculos que deveriam ser afastados mediante decisões judiciais arbitrárias. Acentuou-se o caráter seletivo e politicamente motivado do sistema de justiça penal.
Em alguns processos criminais, a relativização dos direitos e garantias fundamentais tornou-se a regra e as ilegalidades acabaram naturalizadas com o objetivo de potencializar o controle social dos indesejáveis. O conjunto de processos que receberam a marca “lava jato”, por exemplo, se caracterizaram pela ilimitação, uma espécie de “vale tudo” na busca por condenações seletivas que serviam à satisfação de interesses econômicos e políticos de determinados grupos, inclusive estrangeiros.
A partir do momento em que as ilegalidades praticadas nesses processos, que no início contavam com forte apoio midiático, começaram a ser reveladas, o que se deu no momento em que um conjunto de mensagens de alguns dos protagonistas da máquina de perseguição lavajatista tornou-se pública, os mesmos atores jurídicos (e formadores de opinião de diversos meios de comunicação de massa) que, até bem pouco tempo, naturalizavam a violação dos direitos fundamentais, passaram a defender a tese de que os autores dessas ilegalidades não poderiam ser investigados ou punidos, isso porque a norma constitucional que veda a utilização da prova ilícita impediria a utilização do vasto conjunto d e mensagens obtido na operação “spoofing”, material capaz de demonstrar a existência de diversos crimes praticados por atores jurídicos que protagonizaram a “lava jato”. Sobre essa tese da impunidade dos agentes públicos que envolvidos em ilegalidades na “lava jato”, algumas questões merecem ser destacadas:
– Os direitos e garantias fundamentais são inegociáveis. Ao contrário do que se tornou regra nos processos que receberam a etiqueta da “lava jato”, os direitos fundamentais não podem ser relativizados ou negociados, isso porque integram o conteúdo material do conceito de democracia (democracia constitucional). Cada direito ou garantia fundamental funciona como trunfo contra maiorias de ocasião e arroubos autoritários de agentes públicos. Mesmo que muitas pessoas, desinformadas por campanhas publicitárias e/ou midiáticas, desejem o afastamento de uma garantia fundamental, isso não pode ocorrer sob pena de violação à própria democracia;
– O princípio da legalidade se caracteriza por uma dupla normatividade. A legalidade se manifesta de maneira diferente para os agentes públicos em comparação com as demais pessoas. Os agentes públicos só podem fazer aquilo a que estão expressamente autorizados por lei, enquanto as demais pessoas podem fazer tudo aquilo que não está vedado por lei. No campo penal, por exemplo, a legalidade estrita procura limitar os espaços de arbítrio e de discricionariedade dos agentes públicos para reduzir os riscos de opressão estatal e de perseguição ilícita. Essa dupla normatividade que se extrai do princípio da legalidade também se manifesta na valoração das ilegalidades: o campo de adesão lícita dos agentes públicos é muito mais reduzido, da mesma forma que a tolerância com as suas ilegalidades é menor. Essa diferença normativa também se manifesta no âmbito de incidência e da concretização do princípio constitucional da vedação da prova ilícita;
– A inversão ideológica dos direitos e garantias fundamentais não é admitida nas democracias constitucionais. Tais direitos e garantias inscritos no artigo 5º da Constituição da República, que integram a dimensão material da democracia, são limites à ação do Estado. Eles formam o que alguns chamam de liberdades públicas, ou seja, liberdades contra ações ilegítimas do Estado. Existem, portanto, para evitar que cidadãos (aqueles que podem fazer tudo aquilo que a lei não proíbe) tenham a sua liberdade arbitrariamente limitada. Em resumo, servem para evitar que agentes públicos (aqueles que só podem fazer aquilo que a lei estritamente determina ou autoriza) limitem a liberdade dos indivíduos e não para proteger e evitar a responsabilização dos agentes públicos que praticam ilegalidades atentatórias à liberdade dos cidadãos. A vedação da prova ilícita é um direito fundamental e, portanto, não pode ser utilizado como uma garantia de impunidade para ações que atentam contra o próprio sistema de direitos e garantias individuais;
– A tipicidade penal nem sempre leva à ilicitude. O fato de uma conduta ser prevista na legislação como penalmente típica é um indício de ilicitude: normalmente, um fato típico é também ilícito. Todavia, presente uma hipótese de exclusão da ilicitude, o fato típico deve ser considerado lícito. Um ato em defesa da democracia — consciente ou inconscientemente praticado para esse fim — mais precisamente em defesa, ou que resulte na defesa, do sistema de direitos e garantias fundamentais ou dos direitos de cidadania, por exemplo, mesmo que típico não pode ser considerado materialmente ilícito, sempre que a consequência da ausência desse ato for a concretização de um ilícito de dimensão constitucional. Em outras palavras, a mesma Constituição, que torna inegociáveis os direitos e garantias fundamentais, em autodefesa, reduz o âmbito da ilegalidade: atos que em sua prática configurem defesa da normatividade constitucional tendem a ser lícitos. Assim, mesmo que se possa afirmar a tipicidade penal em relação à conduta que originou uma prova, não há como afirmar a ilicitude probatória sem considerações sobre os efeitos de sua utilização concreta;
– As ilegalidades, parcialidades judiciais, atipicidades processuais, com destaque para a violação e direitos e garantas fundamentais dos investigados e processados, ocorridas no âmbito da “lava jato” eram tão explícitas (verdadeiramente, pornográficas) e evidentes (fatos que independem, portanto, de maiores provas) , que se torna legítimo admitir que eventuais ilícitos praticados pelos agentes públicos que atuavam na “lava jato” seriam inevitavelmente descobertos em razão de fontes independentes dos elementos de convicção obtidos em decorrência da invasão às contas do Telegram de autoridades públicas;
A operação “spoofing” foi uma investigação policial deflagrada em 2019, com o objetivo de apurar a materialidade e a autoria de invasões às contas digitais de autoridades brasileiras no Telegram, aplicativo de troca de mensagens. O teor de algumas das mensagens, que se tornaram públicas em razão dessas invasões, revela a possibilidade de agentes estatais terem cometido uma série de crimes.
Não há, até o momento, notícia de qualquer ilegalidade no âmbito dessa investigação: a obtenção dos elementos de convicção na chamada “operação spoofing”, portanto, deve ser considerada lícita, bem como a prova documental que retrata a troca de mensagens entre agentes estatais. Em outras palavras, o Estado agiu dentro dos limites autorizados pela legislação brasileira.
Resta, portanto, analisar se o teor das mensagens, retratado em documentos lícitos nos autos da investigação da “operação spoofing”, que seriam o resultado da “invasão das contas” do Telegram, pode ser utilizado em novos processos em desfavor dos agentes que tiveram suas contas invadidas ou de seus interlocutores. resposta deve ser afirmativa.
descoberta de crimes durante a investigação de outros crimes não é um fenômeno novo. Com frequência, o acaso leva à descoberta de crimes e à punição de seus autores.
Registre-se, de início, que aqui não se está diante do fenômeno do “fishing expedition”, o que levaria à ilicitude da prova. A operação “spoofing” não produziu “procuras especulativas”, sem “causa provável” ou em violação aos limites legais autorizados para a investigação. Os agentes da persecução penal, ao contrário do que acontecia no âmbito da “lava jato”, não se aproveitaram do exercício do poder para violar a intimidade de cidadãos ou inverter a lógica das garantias fundamentais.
Na realidade, em meio à investigação sobre a conduta de uma pessoa suspeita de atuar como hacker, deu-se o encontro casual de elementos de convicção que apontam para a existência de crimes praticados por agentes públicos (serendipidade, como se costuma chamar).
A tese dos defensores da impunidade dos agentes públicos que tiveram suas contas invadidas é simplista e, se levada ao extremo, deixaria sem a devida responsabilização os autores de um conjunto de ações aptas a colocar em risco o próprio sistema de direitos e garantias constitucionais. Nunca é demais lembrar: pessoas presas e perseguidas arbitrariamente, uma delas levada ao suicídio, caso do reitor Cancellier; grandes empresas nacionais quebradas por uma programação criminosa a serviço de interesses locais e alienígenas, dentre diversos outros macabros episódios. A impunidade desses agentes significará a desmoralização do Sistema de Justiça brasileiro.
De início, pode-se afirmar que a norma constitucional que torna inadmissível a prova ilícita em processos criminais destina-se a sancionar ações ilícitas de agentes públicos, ou seja, evitar a opressão de um cidadão por agentes do Estado. Soa intuitivo que os direitos e as garantias constitucionais não podem ser pervertidos para servir à impunidade de agentes públicos — juiz e procuradores — que, mancomunados, atuavam para restringir o sistema de direitos ou garantias constitucionais e, em última análise, atentar contra a democracia constitucional.
Note-se que a prova (o documento que retrata as mensagens incriminadoras) não foi produzida ou forjada por agentes estatais com o objetivo de produzir condenações ilegítimas (como as provas obtidas mediante violação de domicílio, coação de testemunhas, prisões ilegais ou tortura, praticadas por agentes estatais), mas por um particular sem qualquer interesse em violar liberdades públicas (liberdades frente ao Estado). violação da legalidade por agentes estatais, em razão da própria principiologia constitucional, é muito mais grave do que aquela praticada por particulares.
A dupla normatividade do princípio da legalidade também indica que a vedação da utilização de prova ilícita em favor de um juiz ou um procurador da República, que que se vale do cargo para a prática de crimes, deve ser compreendida em atenção aos vetores interpretativos que se relacionam com os servidores públicos. No caso em exame, como já se explicitou, não se trata de uma prova ilegitimamente produzida com o objetivo de gerar a condenação de um determinado agente estatal. A ilicitude apontada é alheia à ação do Estado e não é alcançada pela norma, dirigida aos agentes estatais, que se extrai do artigo 5º., inciso LVI, da Constituição: são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.
Vale lembrar que a dúvida sobre a ilicitude da prova deve sempre favorecer o cidadão (que pode fazer tudo aquilo que a lei expressamente não vede), mas o mesmo não acontece com os agentes públicos, isso em razão do interesse público qualificado e dos princípios que regem a atuação dos funcionários públicos, inclusive dos agentes políticos (legalidade estrita, impessoalidade, moralidade, publicidade etc.).
Em apertada síntese, a tese da inadmissibilidade desses documentos, que revelam a prática de crimes de agentes estatais que atuavam no sistema de justiça, caracteriza uma hipótese de inversão ideológica do sentido e da efetividade dos direitos e garantias fundamentais. Os direitos e garantias fundamentais são limites à ação dos agentes estatais e não podem nem devem ser utilizados para gerar a impunidade de ações ilegítimas de juízes e procuradores da República em violação ao próprio sistema de direitos e garantias constitucionais.
E mais. Essas provas da ilicitude das ações de agentes públicos, que alguns querem qualificar de “ilícitas”, ajudaram a evitar a perpetuação de graves violações aos direitos e garantias fundamentais de diversos cidadãos. democracia constitucional não resistiria à normalização das práticas que se davam no âmbito da operação “lava jato” e que já começavam a influenciar desvios semelhantes em outros processos. Reconhecer a legitimidade probatória, neste caso, é um ato de defesa da própria democracia e o acervo da operação “spoofing” abre uma oportunidade única ao Sistema de Justiça para não permitir a impunidade de agentes estatais que traíram a Constituição.
Wadih Damous é advogado, mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado PUC-RJ. Presidente da OAB-RJ (2007/12). Deputado federal pelo PT-RJ (2015/18).