Dentre as derrotas da denominada operação “lava jato”, pode-se dizer que a incompetência processual foi uma das molas propulsoras do seu processo de desidratação e enfraquecimento. Nesse contexto, afora a “supercompetência” da 13ª Vara Federal de Curitiba e as corriqueiras investidas contra o foro por prerrogativa de função, situa-se o bypass ao INQ nº 4.435-AgR-Quarto/DF, fenômeno praticado com recorrência durante a “lava jato”, cujo objetivo era driblar a competência penal da Justiça Eleitoral.
Aliás, segundo o ministro Gilmar Mendes , além de se caracterizar por “tentativas infundadas de manipulação do Juízo competente”, o bypass costuma ocorrer em duas situações específicas:
(1) “quando os indícios de crimes eleitorais são simplesmente desconsiderados pelos órgãos de persecução e pelo Poder Judiciário”, bem como
(2) “quando há o arquivamento sumário das infrações penais eleitorais para se superar o entendimento firmado pelo STF em relação à definição do juiz natural”.
Felizmente, as tentativas infundadas de bypass ao INQ nº 4.435-AgR-Quarto/DF foram prontamente repudiadas pelo Supremo Tribunal Federal.
Todavia, o problema não será dirimido se for permitida a convalidação ou ratificação de atos decisórios prolatados em contextos de bypass ao INQ nº 4.435-AgR-Quarto/DF. Isso porque, uma vez diagnosticado o espaço ocupado pela garantia do juiz natural e do devido processo legal no processo penal, conclui-se que a convalidação ou ratificação de atos decisórios não possui conformidade com o processo penal constitucional, sobretudo em casos de bypass ao INQ nº 4.435-AgR-Quarto/DF. Em linhas gerais, a impossibilidade de convalidar ou ratificar atos decisórios em contextos de bypass ao INQ nº 4.435-AgR-Quarto/DF se arrima em quatro fundamentos: (1) insegurança jurídica, (2) cerceamento de garantias, (3) impossibilidade de beneficiar atos de má-fé processual e (4) impossibilidade de sanar atos absolutamente nulos. Impõe-se, assim, analisar o suporte argumentativo de cada fundamento.
O contexto de insegurança jurídica é fruto direto da ausência de uma base normativa sólida e de um conceito jurídico consistente, bem como da oscilação da jurisprudência do STF sobre a matéria. No campo normativo, repousa uma primeira controvérsia sobre os efeitos jurídicos da incompetência no processo penal: o artigo 564, I, do CPP, compreende a incompetência como causa de nulidade, estando em consonância com o artigo 5º, LIII, da CF, o qual assegura que ninguém será “processado” ou “sentenciado” senão pela autoridade competente; por outro lado, o artigo 567 do CPP inquina a nulidade apenas dos atos decisórios. Aliás, justamente em razão disso, existem no mínimo cinco correntes sobre os efeitos jurídicos da incompetência no processo penal.
Além disso, o problema normativo se irradia sob a convalidação ou ratificação dos atos decisórios em si. Isso porque, enquanto o artigo 108, § 1º c/c o artigo 109, ambos do CPP, permitem a ratificação dos atos anteriores, o artigo 573 e o artigo 652, ambos do mesmo CPP, apresentam alternativa diametralmente oposta; isto é: a retificação ou a renovação dos atos nulos ou de todo o processo.
Não bastasse isso, compulsando a doutrina brasileira, constata-se que, via de regra, a doutrina não se aprofunda e nem enfrenta o tema de maneira frontal, ao tratar do instituto da convalidação ou ratificação de atos decisórios prolatados por juízo incompetente. Quando trata da matéria, na maioria das vezes, acaba por circunscrever a discussão à jurisprudência do STF.
Ocorre que, não raras vezes, a discussão é abordada de modo casuístico pela jurisprudência, prescindindo do indispensável aprofundamento teórico-científico. Aliás, o maior exemplo disso é a corriqueira referência ao HC nº 83.006/SP: embora o STF classifique referido precedente como um marco na possibilidade de convalidação ou ratificação de atos decisórios , o fato é que a Suprema Corte aplica o entendimento desde o HC nº 33.442/DF, julgado em 1955 pela 1ª Turma, da lavra do ministro Nelson Hungria.
A convalidação ou ratificação de atos decisórios em contextos de bypass ao INQ nº 4.435-AgR-Quarto/DF também provoca o cerceamento de garantias, como o juiz natural (artigo 5º, LIII, da CF), o devido processo legal (artigo 5º, LIV, da CF), o contraditório e a ampla defesa (artigo 5º, LV, da, CF), o promotor natural (artigo 10, IX, da Lei nº 8.625/93), a motivação dos atos decisórios (artigo 93, IX, da CF), etc. Por exemplo, imagine-se o ato decisório de apreciação da resposta à acusação (artigos 397 e 399 do CPP), o qual foi prolatado pela Justiça Federal em contexto de bypass ao INQ nº 4.435-AgR-Quarto/DF. Reconhecida a manipulação da competência, declina-se para a Justiça Especializada, sendo que o Juízo Eleitoral simplesmente convalida ou ratifica o ato decisório de apreciação da resposta à acusação, iniciando-se imediatamente a instrução.
Nesse caso, a convalidação ou ratificação tolheu o acusado de ser denunciado pelo membro do Ministério Público com legitimidade para acusá-lo, na medida em que, ao convalidar ou ratificar o ato decisório, o fez também em relação à denúncia. Inclusive, não se pode olvidar que a interpretação jurídica do membro legítimo do Ministério Público poderia ser mais benéfica ao acusado. Ademais, ao simplesmente convalidar ou ratificar, o juízo competente suprimiu uma das oportunidades processuais do acusado contraditar a acusação; qual seja: ele não recebeu uma nova resposta à acusação.
Ainda, o juízo competente diminuiu o seu ônus argumentativo, pois apenas incorporou os argumentos alheios. Inclusive, com a implementação do juiz das garantias, o exemplo apresentado também traduz a supressão do direito ao juiz das garantias competente; afinal, ao convalidar/ratificar o ato decisório do artigo 397 do CPP, o fez também em relação aos atos decisórios pretéritos prolatados no decorrer da investigação, incluindo a decretação de medidas cautelares reais ou patrimoniais e o deferimento de meios de obtenção de prova, cuja competência era do juiz das garantias (artigo 3º-B, V e XI, do CPP).
O dever de boa-fé processual, além de encontrar amparo normativo no artigo 5º do CPC, aqui aplicável por meio do artigo 3º do CPP, é pressuposto da própria atuação dos atores processuais, incluindo o Ministério Público (artigo 127 da CF e artigo 43, II, da Lei nº 8.625/93), a advocacia (artigo 2º, parágrafo único, II, do Código de Ética e Disciplina da OAB) e o Poder Judiciário (artigo 35, I, da LC nº 35/79). Nesse sentido, e nas estreitas balizas conceituais fixadas pelo ministro Gilmar Mendes, o contorcionismo acusatório, a ignorância seletiva e a manipulação da competência são características típicas do fenômeno do bypass ao INQ nº 4.435-AgR-Quarto/DF.
Bem por isso, trata-se de nítida e inequívoca atuação carente de boa-fé dos atores processuais; logo, afora o cenário de insegurança jurídica e a violação de garantias, a atuação processual se situa em sentido diametralmente oposto ao dever de boa-fé processual, previsto no artigo 5º do CPC, bem como pressuposto do processo contemporâneo e democrático.
Finalmente, não obstante estes autores possuam ressalvas ao maniqueísmo que caracteriza a discussão nulidade absoluta vs. nulidade relativa, cuida-se de distinção adotada com frequência pela doutrina e jurisprudência majoritárias. Nesse sentido, tendo em vista que o bypass ao INQ nº 4.435-AgR-Quarto/DF viola a competência constitucional da Justiça Eleitoral (artigo 109, IV e artigo 121 da CF), trata-se de incompetência (e nulidade) absoluta, não se sujeitando às hipóteses de sanabilidade e aproveitamento dos atos processuais, incluindo a convalidação ou ratificação dos atos decisórios.
Em linhas gerais, esses são os fundamentos que apontam para impossibilidade de ratificar ou convalidar atos decisórios prolatados em contextos de bypass ao INQ nº 4.435-AgR-Quarto/DF. Não obstante, a matéria ainda está longe de encontrar um ponto de equilíbrio, mormente na jurisprudência do STF. Afinal, encontram-se precedentes do STF permitindo a convalidação ou ratificação em contextos de bypass ao INQ nº 4.435-AgR-Quarto/DF, a exemplo da RCL nº 53.124/RJ. Ao mesmo tempo, o STF, na pessoa do ministro Gilmar Mendes, já avançou no reconhecimento da nulidade, afastando os efeitos dos atos decisórios prolatados em contextos de bypass ao INQ nº 4.435-AgR-Quarto/DF, vide o HC nº 214.214-ED/DF e a RCL nº 32.081-ED/PR.
O Poder Legislativo, por sua vez, demonstra o interesse de aperfeiçoar a regulamentação da matéria, conforme se extrai dos artigos 158 e 160, ambos do PL nº 8.045/10, famoso Anteprojeto de Reforma do Código de Processo Penal, os quais merecem aprofundamento, sobretudo para evitar um incentivo indireto à manipulação dos critérios infraconstitucionais de competência.
No fundo, ao verticalizar a discussão relativa aos efeitos jurídicos da incompetência no processo penal, incluindo o controverso e polissêmico instituto da convalidação ou ratificação dos atos decisórios em casos de incompetência, o que está em jogo é o espaço ocupado pela garantia do juiz natural (artigo 5º, LIII, da CF) e do devido processo legal (artigo 5º, LIV, da CF) no processo penal. Torna-se, portanto, necessário reafirmar o nosso compromisso com um processo penal justo e ético, com lealdade entre as partes, integridade na prestação jurisdicional, e, acima de tudo, um processo que afirme a dignidade da pessoa humana, com o seu julgamento por um juiz imparcial e equidistante. Em suma, um processo com regras e princípios e que retrate uma verdadeira e autêntica democracia.
Miguel Tedesco Wedy é doutor em Direito pela Universidade de Coimbra, decano da Escola de Direito e professor na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e advogado.
Mauirá Duro Schneider é bacharel em Direito, bolsista no Programa de Pós-Graduação em Direito na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e advogado.