Um impasse recorrente com que se depara o contribuinte exigido judicialmente pelas autoridades fazendárias, bem como o advogado militante no contencioso judicial tributário, diz respeito às interações entre a ação de execução fiscal, como típica ação exacional (i.e., ação de cobrança), de um lado, e a ação anulatória de débito tributário e os embargos à execução fiscal, como típicas ações antiexacionais (i.e., ações de defesa), de outro.
A questão torna-se especialmente instável nas hipóteses em que o contribuinte, buscando antecipar-se à cobrança fazendária, ajuíza a ação anulatória tão logo o crédito tributário adquire foros de definitividade, ainda antes de sua inscrição em dívida ativa ou de sua exigência judicial por meio da execução fiscal.
Antes de percorrer alguns cenários em que essas interações podem se manifestar, realçando seus respectivos desafios e apontando possíveis soluções, vale tecer breves comentários gerais a respeito do processo civil e de sua aplicação em matéria tributária.
A cobrança judicial de créditos tributários possui tratamento jurídico específico, previsto na Lei nº 6.830/1980 [3], conhecida como Lei de Execuções Fiscais (LEF). Seu artigo 1º prevê [4], ainda, a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil (CPC) [5], que divide o processo em uma etapa cognitiva, de um lado, e uma etapa executiva (lato sensu), de outro.
A pretensão executiva pode, ou não, ter por lastro um título judicial decorrente de prévio exame judicial (etapa cognitiva). Caso positivo, estar-se-á diante de título executivo judicial (artigo 515 do CPC), cuja realização concreta demanda o processamento do cumprimento de sentença. Exatamente por suceder análise de mérito pelo Poder Judiciário, o rito processual correspondente é marcado pelo maior grau de certeza quanto aos requisitos do título executivo. Caso negativo, porém, estar-se-á diante de título executivo extrajudicial (artigo 784 do CPC).
Desde logo destaca-se que a Certidão de Dívida Ativa (CDA), documento que dá lastro ao manejo de execução fiscal (artigo 6º, §1º, da LEF) [6], consiste em título executivo extrajudicial (artigo 784, inciso IX, do CPC). Além disso, trata-se de título com formação unilateral pelos órgãos fazendários, no que se difere de todos os demais títulos executivos extrajudiciais, prescindindo até mesmo da participação do devedor em sua constituição. Isso quer dizer que os órgãos fazendários podem se valer da ação de execução fiscal para iniciar a exigência diretamente na etapa executiva do processo.
Abre-se uma breve digressão a fim de descrever o rito processual que dita a marcha da ação executiva. Com o ajuizamento da ação e a respectiva citação do executado, instaura-se o liame processual, perfazendo a (a) fase inicial da etapa executiva.
Composta a lide, o juízo procede à (b) fase preparatória da etapa executiva, em que se dá a constrição de parcela do patrimônio do executado, a fim de garantir a ulterior satisfação da dívida. É com o aperfeiçoamento dessa fase que se oportuniza a insurgência do executado quanto ao mérito da cobrança, mediante oposição de embargos à execução fiscal.
Julgados improcedentes os embargos é que se procede à derradeira (c) fase satisfativa da etapa executiva, em que se dá a expropriação do patrimônio previamente constrito, a ser empregado na satisfação da dívida executada.
Retornando ao exame da especificidade da CDA enquanto título executivo extrajudicial formado unilateralmente, o ajuizamento da ação anulatória de débito tributário, prevista no artigo 38 da LEF [7], é uma das saídas de que dispõe o contribuinte para tentar evitar a constrição de seu patrimônio em virtude de execução de título ainda não examinado judicialmente e de cuja a formação não participou.
Como já se afirmou, a tutela anulatória objetivada supõe a deflagração da etapa cognitiva do processo. Via de regra, a pretensão desconstitutiva é ainda acompanhada de pedido de concessão de tutela provisória de urgência para suspender a exigibilidade do crédito tributário.
Por outro lado, o CPC dispõe que “a propositura de qualquer ação relativa a débito constante de título executivo não inibe o credor de promover-lhe a execução” (artigo 784, §1º, do CPC) [8]. Veja-se que o diploma processual civil, introduzido em 2015, inovou o ordenamento jurídico ao prever expressamente a reunião da “execução de título extrajudicial e à ação de conhecimento relativa ao mesmo ato jurídico” no juízo prevento (artigo 55, §2º, inciso I, do CPC) [9]. Trata-se de medida fundamental para se evitar a prolação de decisões judiciais conflitantes a respeito de um mesmo substrato fático e jurídico, que serve também para atenuar o sentimento de insegurança jurídica que paira sobre o país.
A questão adquire novos contornos, todavia, quanto se atenta ao fato de que a maioria dos Tribunais brasileiros, tanto no nível federal quanto no estadual, dispõe de regras prevendo a competência absoluta de Varas Especializadas para o processamento e julgamento das execuções fiscais.
Essa circunstância acaba inviabilizando a reunião por conexão da ação anulatória de débito tributário com a execução fiscal, quando a anulatória foi ajuizada anteriormente. No caso, o juízo prevento seria aquele ao qual se distribuiu a ação anulatória. No entanto, o caráter absoluto da competência das Varas Especializadas para o julgamento das execuções fiscais impede a reunião das ações., que se encontram em distintos estágios do rito processual (a ação anulatória, em sua etapa cognitiva, e a execução fiscal, em sua etapa executiva).
O que a prática forense evidencia é que os processos passam a tramitar em paralelo, de modo que a legalidade da cobrança se submete ao crivo de juízos distintos. Na eventualidade de que o pedido de concessão de tutela provisória de urgência veiculado na ação anulatória ainda penda de exame, ou, ainda, quando da sua rejeição, o ajuizamento da execução fiscal implicará a citação do executado para quitar a dívida ou garanti-la, em sua etapa inicial. Após a etapa preparatória, com a efetivação da penhora (espontânea ou forçada), abre-se, então, o prazo para que o executado oponha embargos à execução fiscal.
Nesse cenário, entretanto, há uma essencial equivalência entre a ação anulatória de débito tributário e os embargos à execução fiscal, enquanto instrumentos processuais próprios para a defesa do contribuinte em relação a créditos tributários exigidos de si.
No ponto, vale-se da lição do professor Rodrigo Dalla Pria, para quem “a ação anulatória, ao se voltar contra débito fiscal objeto de cobrança via ação executiva, assume a função de ‘embargos do devedor’, fazendo-lhe as vezes” [10]. Como consequência dessa circunstância tem-se a citação do executado para manejar instrumento de defesa, qual seja: os embargos à execução fiscal, que, todavia, guardam relação de litispendência com a ação de conhecimento ajuizada anteriormente, razão pela qual se encontram destinados ao insucesso.
Nesse sentido, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) possui jurisprudência pacífica segundo a qual “deve ser reconhecida a litispendência entre os embargos à execução e a ação anulatória ou declaratória de inexistência do débito proposta anteriormente ao ajuizamento da execução fiscal, se identificadas as mesmas partes, causa de pedir e pedido” [11].
Os Tribunais Regionais Federais (TRFs) vêm decidindo na mesma direção [12]. Os embargos à execução fiscal opostos após a citação de contribuinte que já ajuizara ação anulatória de débito tributário correm ainda o risco de serem extintos com condenação em ônus sucumbenciais, em expediente de questionável razoabilidade.
O cenário é de um verdadeiro impasse. Se o contribuinte optar por embargar a execução fiscal, corre o risco dos ônus sucumbenciais em razão da litispendência com a ação anulatória que já ajuizara. Se não o fizer, porém, o juízo da execução fiscal dará seguimento ao feito, com a efetiva expropriação dos bens constritos em favor do exequente, em medida de difícil reversibilidade, consistente no leilão do bem penhorado, na conversão do seguro-garantia em depósito judicial e, até mesmo, na conversão do depósito em renda.
Outro cenário ainda mais sintomático do embaraço é aquele no qual o contribuinte se vê sujeito à execução fiscal de dívida declarada em Declaração de Compensação, transmitida à Receita Federal pelo sistema PER/DCOMP, não homologada pelo Fisco. É que o §3º do artigo 16 da LEF, que disciplina as matérias de defesa a serem veiculadas em sede de embargos à execução fiscal, dispõe que “não será admitida reconvenção, nem compensação, e as exceções, salvo as de suspeição, incompetência e impedimentos, serão arguidas como matéria preliminar e serão processadas e julgadas com os embargos” [13].
Em recente decisão proferida em sede de embargos de divergência [14], a 1ª Seção do STJ assentou o entendimento de que é defeso ao contribuinte rediscutir compensação não homologada administrativamente em sede de embargos à execução fiscal como causa extintiva da dívida autodeclarada e sob execução.
Mesmo que a execução fiscal esteja garantida, portanto, sua única saída consistiria no ajuizamento da ação anulatória, na etapa cognitiva do processo civil, o que não obstaria o regular seguimento do feito executivo. Também nesse cenário o contribuinte se vê sujeito ao risco de expropriação de seu patrimônio em favor do exequente, sem que o mérito da higidez da cobrança tenha sido analisado pelo Judiciário.
Tais impasses decorrem das relações recíprocas que guardam a execução fiscal, os embargos à execução fiscal e a ação anulatória de débito tributário entre si. Enquanto se veda o manejo concomitante dos embargos à execução fiscal e da ação anulatória, por força da chamada litispendência, a relação que permeia as interações entre essa execução e a ação é aquela a que a doutrina convencionou denominar prejudicialidade externa.
No ponto, é de se destacar que o CPC dispõe de preceito específico para disciplinar essas interações, de modo a resguardar o interesse do exequente e a menor onerosidade do executado. Trata-se da alínea “a” do inciso I do artigo 313 do CPC, segundo o qual se suspende o processo quando a sentença de mérito “depender do julgamento de outra causa ou da declaração de existência ou de inexistência de relação jurídica que constitua o objeto principal de outro processo pendente” [15].
A solução para ambos os cenários apresentados acima é a suspensão imediata da execução fiscal até a prolação de decisão definitiva de mérito a respeito da higidez da cobrança na ação anulatória que tem os mesmos débitos por objeto, desde que, por certo, a dívida se encontre garantida no feito executivo.
Voltando-se especificamente ao cenário apresentado em que a ação anulatória é ajuizada antes da execução fiscal, o professor Paulo Cesar Conrado vai no mesmo sentido, sustentando entendimento segundo o qual “tomar-se-á aquela ação (a anulatória) como prejudicial, cuja solução deve preceder o prosseguimento da atividade executória” [16].
Com efeito, parece justamente esse o racional por trás da antiga exigência de “depósito preparatório” ao ajuizamento da ação anulatória, constante do artigo 38 da LEF, confirmando sua equivalência material com os embargos à execução fiscal, enquanto meios de defesa do devedor executado.
Isso pois, os embargos à execução fiscal, em contraste com os embargos à execução civil em geral, demandam a garantia prévia da dívida, implicando óbice ao seguimento da execução até sua fase satisfativa, enquanto não julgado o mérito dos embargos.
Foi o que afirmou a ministra Carmem Lúcia por ocasião do seu voto na ADI nº 5.1665/DF: “mesmo quando os embargos à execução fiscal não são dotados de efeito suspensivo pelo juiz, não é possível à Fazenda Pública adjudicar os bens penhorados ou levantar o valor do depósito em juízo antes do trânsito em julgado da sentença dos embargos” [17].
Assim o sendo, aplica-se a mesma lógica à relação de prejudicialidade externa que guardam entre si a execução fiscal com a ação anulatória que tenha os mesmos débitos por objeto. Mesmo que o depósito prévio não seja mais exigido para o manejo da ação anulatória [18], é certo que eventual penhora realizada na execução fiscal implicaria a necessidade de sua suspensão imediata até o julgamento definitivo da legalidade da exigência na ação anulatória, porquanto presentes os requisitos: 1) relação de prejudicialidade externa (artigo 313, inciso I, al. “a” c/c artigo 55, §2º, inciso I, ambos do CPC) e 2) garantia da dívida (artigo 16, §1º, da LEF).
Em que pese a aplicação do artigo 313, inciso I, al. “a”, do CPC ainda manifeste timidez nas instâncias inferiores, bem como do racional que lhe dá sustentação, é possível encontrar sua aplicação na jurisprudência do STJ [19].
A título ilustrativo, colaciona-se excerto extraído da ementa de julgamento de Conflito de Competência, em que se consigna:
“embora não seja permitida a reunião dos processos, havendo prejudicialidade entre a execução fiscal e a ação anulatória, cumpre ao juízo em que tramita o processo executivo decidir pela suspensão da execução, caso verifique que o débito está devidamente garantido, nos termos do artigo 9º da Lei 6.830/80.” [20]
Trata-se de entendimento acertado, porquanto sensível aos impasses em que se vê o contribuinte executado, ao passo em que resguarda o Fisco com a respectiva garantia da dívida executada.
Nesse quadro, a aplicação do artigo 313, inciso I, al. “a”, do CPC, com o sobrestamento dos atos executórios, em feito cujo crédito tributário correspondente já esteja integralmente garantido, até o julgamento definitivo de ação anulatória que lhe precede, é a medida mais eficaz e razoável que o Poder Judiciário pode adotar, a fim de evitar os potenciais efeitos de difícil reversibilidade que a não suspensão do feito executivo pode ocasionar para o contribuinte, sobretudo com a efetiva ultimação dos atos expropriatórios.
[3] BRASIL. Lei n. 6.830, de 22 de setembro de 1980. Dispõe sobre a cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 set. 1980. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/
[4] Conforme o artigo 1º: “A execução judicial para cobrança da Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respectivas autarquias será regida por esta Lei e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil” (BRASIL, 1980, online).
[6] “Artigo 6º […] §1º – A petição inicial será instruída com a Certidão da Dívida Ativa, que dela fará parte integrante, como se estivesse transcrita” (BRASIL, 1980, online).
[7] “Artigo 38 – A discussão judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública só é admissível em execução, na forma desta Lei, salvo as hipóteses de mandado de segurança, ação de repetição do indébito ou ação anulatória do ato declarativo da dívida, esta precedida do depósito preparatório do valor do débito, monetariamente corrigido e acrescido dos juros e multa de mora e demais encargos.
Parágrafo Único – A propositura, pelo contribuinte, da ação prevista neste artigo importa em renúncia ao poder de recorrer na esfera administrativa e desistência do recurso acaso interposto” (BRASIL, 1980, online).
[8] Brasil (2015, online).
[10] DALLA PRIA, Rodrigo. Direito Processual Tributário. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Noeses, 2021. p. 286-287.
[11] SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). T1 – Primeira Turma. AgRg no AREsp: 208266 RJ 2012/0154222-0, relator: ministro Benedito Gonçalves, julg. 07/05/2013, DJe de 14/05/2013.
[12] Cf.: TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO (TRF3). 4ª Turma. ApCiv: 5005138-49.2021.4.03.6128, relatora: desembargadora federal Monica Autran Machado Nobre, julg. 03/04/2023, intimação via sistema em 11/04/2023; e TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO (TRF4). 2ª Turma. Ag: 5016379-44.2021.4.04.0000, relator: ministro Alexandre Rossato da Silva Ávila, juntado aos autos em 26/08/2021.
[13] Brasil (1980, online).
[14] SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). 1ª Seção. EREsp nº 1.795.347/RJ, relator: ministro Gurgel de Faria, jul. 27/10/2021, DJe de 25/11/2021.
[15] Brasil (2015, online).
[16] CONRADO, Paulo Cesar. Execução Fiscal. 5. ed. São Paulo: Noeses, 2021, p. 327.
[17] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Tribunal Pleno. ADI nº 5165, relatora: ministra Cármen Lúcia, julg. 21/02/2022.
[18] Cf. Súmula Vinculante n. 28 do STF: “É inconstitucional a exigência de depósito prévio como requisito de admissibilidade de ação judicial na qual se pretenda discutir a exigibilidade de crédito tributário” (DJe nº 28 de 17/2/2010, p. 1.).
[19] Cf.: SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). 1ª Turma. AgInt no AREsp nº 1.196.503/RJ, relator: ministro Napoleão Nunes Maia Filho, julg. 29/4/2019, DJe de 10/5/2019; SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). S1 – 1ª Seção. CC: 38045 MA 2003/0001837-1, relatora: ministro Eliana Calmon, julg. 12/11/2003, DJ de 09.12.2003, p. 202, RSTJ v. 178, p. 47.
[20] SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). S1 – 1ª Seção. CC: 105358 SP 2009/0096889-5, relator: ministro Mauro Campbell Marques, julg. 13/10/2010, DJe 22/10/2010.
Gabriela Bittencourt Zanella é sócia da Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados, mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).
Marco Antonio Toresan é advogado da Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados e pós-graduando na especialização em Direito Tributário do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).