Rosa Malena Gehlen: Constituição Federal é o tone at the top

Derivativo do verto to comply, o termo compliance segundo o Oxford Advanced Learner’s Dictionary (2015, p. 308-309) é, por definição léxica, “a prática de obedecer a regras e requisições feitas por pessoas dotadas de autoridade: procedimentos que devem ser seguidos para garantir pleno cumprimento das leis” [1].

Entretanto, compliance é mais complexo do que indica seu sentido léxico. Trata-se, em verdade, de um riquíssimo sistema, cujo ponto de partida é a ética, que congrega a aplicação de todo o ordenamento jurídico em sua mais ampla acepção, e porque não dizer os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), com suas 169 metas, previstos pela Agenda 2030 da ONU, os quais traçam diretrizes dentro da inafastável perspectiva atual do ESG (environmental, social and governance), tudo dentro de um ambiente que visa a mitigar riscos aos quais as empresas possam estar sujeitas em suas múltiplas conexões, especialmente considerado o seu ramo de atividade, de modo a indicar e recomendar a adoção de um conjunto de medidas que se não eficaz preventivamente, conceda meios de gestão de uma eventual crise.

É um sistema tão complexo que congrega advogados, contabilistas, administradores e outros profissionais de variadas áreas de formação, estruturando-se de forma multidisciplinar e transdisciplinar que coordena um cem número de ações e procedimentos diferentes, mediante aplicabilidade direcionada e treinada para toda a comunidade empresarial, da alta governança aos colaboradores do chão de fábrica, sob o clássico tripé prevenção, detecção e correção.

No Brasil, o compliance se difundiu com a Lei 12.846/2013, a famosa Lei Anticorrupção, cujo desiderato é responsabilizar objetivamente pessoas jurídicas e subjetivamente seus dirigentes e qualquer outras pessoas ligadas àquelas que tenham praticado atos lesivos descritos pelo artigo 5º, em face da Administração Pública. Recentemente regulamentada pelo Decreto 11.129/2022, que substituiu o Decreto 8.420/2015, reforçou-se a ideia base de qualquer sistema de compliance, em especial os programas de integridade, qual seja, o fomento da cultura da integridade, como se lê do artigo 56, do novel decreto.

Dentre muitos aspectos do compliance, um absolutamente relevante é o ligado às boas práticas relacionadas à due diligence, que igualmente encontra previsão no artigo 57, inciso XIII, do referido Decreto 11.129/2022, apregoando como parâmetro do programa de integridade a adoção pelas empresas de “diligências apropriadas, baseadas em riscos”.

 De fato, a due diligence é o procedimento pelo qual se objetiva a mitigar riscos de variadas ordens quando envolve terceiros. Especialmente relevante para operações envolvendo fusões e aquisições, serve para trazer segurança na escolha de fornecedores, representantes e parceiros em geral, até mesmo colaboradores, com foco na prudência e diligência para tomada consciente de decisões empresariais, não que o dever de diligência já não estivesse contemplado no artigo 153, da Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/1976), ou no artigo 1.011, do Código Civil, como um dever tradicional dos administradores no trato das questões envolvendo a empresa, a que se sujeitam inclusive, à responsabilização pessoal.

A OCDE ressalta a importância das devidas diligências. Para ela as operações comerciais podem não ser inerentemente arriscadas, mas as circunstâncias (por exemplo, questões de estado de direito, falta de cumprimento de normas, comportamento de relações negociais) pode resultar em riscos de impactos. A devida diligência auxilia as empresas a antecipar e prevenir ou mitigar esses impactos. Em alguns casos limitados, a devida diligência pode ajudá-las a decidir se devem ou não prosseguir ou até mesmo interromper operações ou relações comerciais, porque o risco de impacto em frente a uma situação adversa pode ser muito alto, ou porque mesmo tendo empreendido esforços de mitigação, estes não tenham sido bem-sucedidos” [2].

Dentre muitos aspectos pelos quais a due diligence se justifica, um exemplo é notoriamente conhecido. Quando se lê notícias como as recentemente veiculadas pela mídia do uso de mão de obra análoga à escrava por algum fornecedor, e essa é uma prática que infelizmente ocorreu repetidas vezes no setor têxtil, no agronegócio (cafeicultura, viticultura, cotonicultura, entre outros), no setor de transporte e logística, na construção civil, a se ver da lastimável e extensa “lista suja” que pode ser facilmente consultada no website do Ministério do Trabalho e Previdência, compreende-se o quão importante se faz a adoção de diligências prévias como ferramenta de contratação, embora também útil na fase de execução do contrato.

É, sem dúvida, um mecanismo fundamental para qualquer empresa, porque de nada adianta fazer a “lição de casa” se o seu fornecedor não o faz. Se a empresa não compactuou, então negligenciou e por isso no mínimo o risco de dano reputacional, o dano à imagem institucional, poderá ser implementado, porque ninguém mais duvida da potência avassaladora advinda da difusão da informação, de modo que não adianta tentar “tapar o sol com a peneira”, é preciso antever situações adversas valendo-se das máximas em todas as suas relações: “know your partner (KYP), know your employee (KYE) and  know your costumer (KYC)”.

As estatais figuram como exemplo mestre da utilização e da especial importância das boas práticas das devidas diligências. Como se sabe, a Lei 13.303/2016 determina no artigo 9º, que as empresas estatais, ou seja, empresas públicas e sociedades de economia mista, implementem regras de estruturas e práticas de gestão de riscos e controles internos, com foco no combate à corrupção e fraudes.

Isso porque quando se fala em estatais intuitivamente rememoramos a operação “lava jato”, encerrada e certamente desmantelada em dias atuais, mas cujo retrato é para nós a percepção da corrupção no país, que sistematizado pelo Transparência Internacional classificou o Brasil em 2022, dentre os 180 países avaliados, na 94ª posição, com seus meros 38 pontos, bem diferente da Dinamarca que com 90 pontos lidera a lista como o país mais íntegro do planeta.

Não por outra razão, a nova de Lei de Licitações e Contratos Administrativos, a Lei 14.133/2021, estabeleceu em seu artigo 11, parágrafo único, como um dever da alta administração do órgão ou entidade, a “gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos”, a fim de promover um ambiente íntegro e confiável.

Há, sem dúvida, um esforço perceptível em busca da integridade.

O que não pode ocorrer, no entanto, é o estreitamento tão extremado que o compliance acaba se tornando non-compliance.

 É o que se lê de uma demanda recentemente julgada pelo TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro), em sede de recurso de Apelação Cível 0208524-33.2019.8.18.000, no âmbito de uma demanda de tutela antecipada de caráter antecedente convolada em ação ordinária, proposta por uma pretensa fornecedora da Petrobras.

Inicialmente, a sentença de primeiro grau julgou procedente o pedido deduzido pela fornecedora a quem a Petrobras atribuiu Grau de Risco de Integridade em nível alto, que a impediu de participar de licitações. O juízo entendeu que a classificação foi subjetiva e não oportunizou o devido processo legal à empresa terceira.

Em grau de recurso de apelação, o TJ-RJ consubstanciou que a discussão cingia-se sobre a forma pela qual o “modelo do programa de compliance adotado pela Petrobras foi empregado, bem como a implementação da due diligence, prevista na Lei 12.846/2013 (…) e na Lei 13.303/2016″.

Destacou-se nas razões do acordão, que a classificação em nível alto de risco de integridade atribuída pela Petrobras à empresa terceira deu-se sem qualquer demonstração de prova ou fundamentação razoável e proporcional a enveredá-la na impossibilidade de participar da licitação. Na ocasião, a estatal também apontou que o programa de integridade da terceira era insuficiente, porém não indicou objetivamente no que residia a incompatibilidade.

Isso levou o TJ-RJ a concluir em sua decisão, que “o fato de o procedimento deflagrado possuir caráter sigiloso não é justificativa para inviabilizar a estrita necessária observância dos princípios que gravitam em torno do devido processo legal, em especial, a ampla defesa do acusado e o pleno exercício do contraditório” julgando improvido o recurso de apelação interposto.

Em sede de embargos de declaração, o tribunal asseverou, ainda, que “a condenação foi no sentido de fazer com que a empresa ré se abstenha de atribuir GRI nível alto à demandante com base exclusivamente em notícia jornalística ou em critério subjetivo e sem a observância do devido processo legal. Ora, tal providência deve ser observada em todas as avaliações de risco procedidas pela empresa recorrente, em face dessa ou de qualquer outra fornecedora, já que se trata da correta aplicação de princípios e de leis em vigor. […]”.

Essa é uma decisão extremamente interessante sob o ponto de vista da aplicabilidade sistêmica do direito. Veja-se que para uma empresa ser compliant ela precisa atender ao seu sistema de compliance, o qual se estrutura a partir de um universo que congrega o ordenamento jurídico em sua mais ampla acepção, como mencionado na introdução deste artigo.

Entretanto, é preciso perceber que ao aplicar os seus procedimentos de compliance, em busca da integridade e rígido comprometimento com a ética, não pode ela se desconectar do diploma maior que rege exatamente o universo onde se insere, a nossa Constituição.

Isso porque a Constituição de 1988 estrutura-se em fundamentos axiológicos que são os pilares existenciais do Estado democrático de Direito, retratado em variados princípios em defesa da pessoa humana, em defesa da sociedade, em defesa do meio ambiente, em defesa da coisa pública, entre outros, princípios estes não só cogentes, mas que emolduram o resultado histórico das conquistas em prol do indivíduo e da sociedade.

Como bem sustenta Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 949), “a desatenção ao princípio não implica ofensa a um específico mandamento obrigatório, mas a todo sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade (…) porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e correção de sua estrutura mestra”.

Significa que ao se restringir a participação de empresas nas licitações em procedimentos de due diligence, subtraindo-lhes do devido processo legal, vergastando como consequência também o fundamental princípio da impessoalidade, que é imprescindível na lisura das contratações públicas e no combate à corrupção, o non-compliance acaba se destacando.

Losinskas e Ferro (2021, p. 854), refletindo sobre a temática, pontuam “do ponto de vista jurídico político e em perspectiva de futuro, importa compreender de que forma a exigência da adoção do compliance pelas empresas que contratam com a Administração Pública pode ser aprimorada, a fim de que, de modo concreto, viabilize-se o atendimento de sua finalidade precípua, qual seja a efetividade na diminuição dos índices de corrupção (…). Do contrário (…) poderá se transformar em apenas mais um dentre tantos outros requisitos formais, que na prática, além de representarem impeditivo à competitividade dos certames (…) não raramente acabam por gerar o efeito inverso ao pretendido pela lei”.

Dito isso, não esqueçamos em momento algum que o tone at the top sempre será a Constituição, a que todo e qualquer sistema de compliance e tudo que lhe for decorrente deve se espelhar, a fim de realmente promover e contribuir com a construção de uma sociedade que seja justa, livre e solidária.

Clique aqui para ler a íntegra o acordão proferido em sede de recurso de apelação

aqui para ler a decisão dos embargos de declaração

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Referências:

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Cível nº 0208524-33.2019.8.19.0001. 2ª Câmara de Direito Privado. Relatora Desa. Renata Machado Costa. J. 15/02/2023. Disponível em: https://www3.tjrj.jus.br/gedcacheweb/default.aspx?UZIP=1&GEDID=000482EA3D84BA71C9B7B2DF7820AB1B2E6AC5135D1E4F62&USER. Acesso em 05 mai.2023.

________. Embargos de Declaração na Apelação nº 0208524-33.2019.8.19.0001. 2ª Câmara de Direito Privado. Relatora desembargadora Renata Machado Costa. J. 17/04/2023. Disponível em: https://www3.tjrj.jus.br/gedcacheweb/default.aspx?UZIP=1&GEDID=000460778BAA9EA7270FEB55C5372B08169BC51423083A12&USER=. Acesso em 05 mai.2023.

DEUTER, Margaret; BRADBERY, Jennifer; TURNBULL, Joanna. Oxford Advanced Learn’s Dictionary of Currente English. 9ª ed. Oxford: Oxford University Press, 2015.

LOSINSKAS, Paulo Vitor Barchi; FERRO, Murilo Ruiz. Manual de Compliance. 3ª. ed. coord. CARVALHO, André Castro Carvalo et al.Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 841-857.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de Melo. Curso de Direito Administrativo. 19ª. ed. São Paulo, Malheiros, 2009.

TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL. Índice da Percepção da Corrupção 2022. Disponível em: https://comunidade.transparenciainternacional.org.br/indice-de-percepcao-da-corrupcao-2022. Acesso em 12 mai.2023.

Rosa Malena Gehlen Peixoto de Oliveira é advogada, pós-graduada em Direito Empresarial pelo Centro Universitário Curitiba (UniCuritiba), em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR) e em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná (Emap), pós-graduanda em Compliance e Integridade Corporativa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG), membro-relatora da Comissão de Estudos sobre Compliance e Anticorrupção Empresarial e membro efetivo da Comissão do Pacto Global, ambas da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção do Paraná.

Consultor Júridico

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